A memória é o mecanismo fisiológico que envolve a aquisição, armazenamento e evocação de informação. A memória pode ser classificada enquanto sua natureza como não declarativa, estando relacionada com a aprendizagem de habilidades de caráter inconsciente (como habilidades motoras, por exemplo), ou declarativa, responsável pelo armazenamento de informações de forma consciente (como fatos e eventos por exemplo). Dentro do contexto de memórias declarativas, se destaca um tipo de memória que é imprescindível para nossas atividades de vida diárias: a memória espacial. A memória espacial é uma função cerebral relacionada a vários comportamentos que envolvem a codificação e a recuperação de informações sobre o ambiente e a orientação espacial de uma pessoa ou objeto, sendo essencial para planejar uma rota ou lembrar de localizações, por exemplo. Esse tipo de memória é muito importante para preservação das informações a longo prazo, estando intimamente envolvida com os processos de consolidação e reconsolidação da memória. Trabalhos realizados com animais e humanos mostraram que a memória espacial depende principalmente de células localizadas no hipocampo, córtex entorrinal e de redes associadas, o que torna esse tipo de memória como ótimo modelo para a pesquisa translacional. Sabe-se que indivíduos com epilepsia quando tratados com lobectomia temporal anterior unilateral com ressecção hipocampal apresentam funções prejudicadas de auto-localização e memorização de locais e ambientes prejudicados. Outros estudos mostraram que no hipocampo, um grupo de células chamadas de “place cells” disparam em alta taxa sempre que um rato está em um local específico do ambiente, já no córtex entorrinal outro grupo de células denominadas de como “grid cells” também apresentam a mesma resposta. Tais descobertas foram a base para a identificação de um "mapa espacial", que identificou grupos neuronais e áreas cerebrais que constituem um sistema de posicionamento fisiológico e a formação da memória espacial.
A formação da memória espacial depende da homeostase de vários sistemas biológicos, como sistema vestibular, proprioceptivo, visual entre outros. Um aspecto muito importante que interage constantemente com esses sistemas e consequentemente também é imprescindível para o processo de formação desse tipo de memória é o mecanismo atencional. O objetivo da nossa memória não é transmitir as informações mais precisas ao longo do tempo, mas orientar e otimizar a tomada de decisão inteligente, mantendo apenas aquelas informações consideradas valiosas, ou seja, aquelas informações adquiridas durante um momento de atenção. A atenção é um processo cognitivo, ou função cerebral que tem como principal função alocar o processamento cognitivo em direção a um estímulo, seja ele de ordem visual, auditiva, ou relacionado a algum outro sentido. Ou seja, a atenção direciona qual informação é mais relevante dentre os diversos inputs sensoriais que ocorrem ao mesmo tempo do estímulo. Nesse contexto, para que a informação mais relevante (como a localização de dicas espaciais no ambiente) possa ser acionada em outro momento de necessidade (lembrar o caminho de casa, por exemplo), essa informação tem que ser consolidada de forma adequada através de uma memória de longo prazo.
Entretanto, com o avanço da idade a memória espacial pode ser prejudicada gradativamente. Sabe-se que adultos mais velhos cognitivamente saudáveis, as grid cells (grupo de neurônios) do córtex entorrinal, começam a funcionar de forma instável, disparando de forma irregular, o que pode estar relacionado às dificuldades de orientação relacionadas à idade. Além disso, o fluxo de informações que chega ao córtex entorrinal (figura abaixo) do nosso sistema sensorial também pode se tornar afetado. Alguns tipos de patologias neurodegenerativas também podem desenvolver déficits de memória espacial, como é o caso da doença de Alzheimer, que está associada a danos no córtex entorrinal em um estágio inicial. Sabendo disso, um modelo de estímulo atencional pode ser utilizado como forma de melhorar o fluxo de informações que irão para áreas responsáveis pelo armazenamento de memórias espaciais, podendo funcionar como uma possível ferramenta compensatória. Além disso, trabalhar a atenção associada a dinâmicas espaciais durante a infância também pode auxiliar na potencialização do desenvolvimento da memória espacial, podendo evitar futuros déficits decorrentes com avanço da idade. A memória espacial que depende do hipocampo, por exemplo, não é inata e surge durante o desenvolvimento em humanos. O início do surgimento das habilidades de memória espacial acontece em crianças por volta dos 22 meses de idade, quando as ‘’grid cells’’ e as ‘’place cells" são sintonizadas espacialmente decorrente do surgimento da atividade padronizada que se propaga através do circuito entorrinal-hipocampal em resposta a estímulos sensoriais advindos do ambiente. Essa atividade neuronal constante e padronizada é fundamental para a maturação normal dos circuitos cerebrais, já que ajusta a conectividade sináptica da rede e impulsiona o surgimento de disparos específicos necessários para a memória espacial. Enquanto os padrões normais de atividade são necessários para a maturação do circuito, durante o desenvolvimento, uma atividade neuronal considerada ‘’aberrante’’ pode ter consequências adversas importantes, interrompendo o desenvolvimento da memória espacial. Dessa forma, investigar a relação entre a estimulação atencional durante a infância e durante o processo de envelhecimento e a função da memória espacial é imprescindível para o avanço científico na área.
Desenho experimental
Aqui vamos sugerir um desenho experimental que tem o objetivo de investigar a relação entre a estimulação atencional durante a infância e durante o processo de envelhecimento e a função da memória espacial. Para isso, seria interessante a análise da atividade elétrica e hemodinâmica cerebral por meio da eletroencefalografia (EEG) e espectroscopia de infravermelho próximo (NIRS), além da análise da atenção através do Eye tracking. Trabalhos realizados com EEG mostraram que ao visualizar pares objeto-localização subsequentemente lembrados ocorre um aumento na a amplitude das oscilações na banda “low theta” de 1-3 Hz no hipocampo esquerdo, enquanto no hipocampo direito esse comportamento eletrofisiológico só ocorre nos períodos de navegação pelo ambiente. Já trabalhos realizados com NIRS encontraram relações lineares ou quadráticas entre memória espacial e maior ativação do córtex pré-frontal, onde também foi observado uma relação entre essa maior atividade e melhores resultados comportamentais de adultos saudáveis quando comparados com idosos saudáveis. O Eye tracking é uma técnica de rastreamento ocular fácil de usar e não invasiva onde você pode coletar dados em contextos empíricos e reais sobre percepção, cognição e comportamento humano. Essa técnica determina aspectos diretamente relacionados à percepção visual, por isso analisa os locais de foco visual que são relevantes para a construção do que vemos como cena visual, e indiretamente pode mensurar a atenção por foco. Dessa forma, seria interessante avaliar a memória espacial de jovens e idoso sem nenhum tipo de distúrbio psiquiátrico ou neurodegenerativo com e sem aplicação de modelo atencional. Para isso os indivíduos podem ser alocados em 6 grupos distintos: grupo 1 (crianças com treino atencional), grupo 2 (crianças sem treino atencional), grupo 3 (idosos com treino atencional), grupo 4 (idosos sem treino atencional). Inicialmente todos os grupos realizaram uma avaliação inicial de EEG/NIRS e Eye tracking durante a exposição em um ambiente novo com com sequências de várias dicas espaciais. Os grupos com treino atencional realizaram tarefas de foco relacionados a dicas espaciais específicas presentes na paisagem durante várias reexposições ao mesmo ambiente. Já os grupos sem treino, apenas seriam reexpostos ao ambiente sem nenhuma estimulação do foco/atenção. Após as sessões de reexposição ocorreria uma avaliação final similar a avaliação inicial (Imagem abaixo).
Referências
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