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     A memória biológica pode ser definida como o mecanismo fisiológico responsável pela aquisição, armazenamento e evocação de informações . Como definiu o fisiologista alemão Ewald Hering em 1920 "A memória recolhe os incontáveis fenômenos de nossa existência em um todo unitário; se não fosse a força unificadora da memória, nossa consciência se estilhaçaria em tantos fragmentos quantos os segundos já vividos". A memória é a base do conhecimento e da aprendizagem, um processo que é construído a partir de uma aquisição sensorial e armazenamento de padrões que podem ser evocados e comparados com outros estímulos ambientais e que consequentemente podem definir uma resposta comportamental. Assim, conseguimos adaptar o meio ambiente às nossas necessidades e ensinamos as próximas gerações a fazerem o mesmo, podendo usar a memória como um viés cultural. Essa capacidade cerebral de armazenar as informações e a habilidade para transmiti-las a gerações seguintes através da memória e aprendizado garante o desenvolvimento racional da raça humana. Dessa forma, a memória é um dos processos psicológicos mais importantes que interfere na formação da nossa identidade cognitiva pessoal e de como interagimos em comunidade. Diversas espécies de animais, principalmente nós seres humanos, possuímos necessidade de interação e socialização e a memória é primordial para fazer com que esse processo aconteça. Experiências vividas, conexões de conhecimentos para criações de novas idéias, informações importantes que podem ser comparadas ajudando no processo de tomada de decisão, tudo isso são mecanismos que sem a memória não seriam possíveis de acontecer, e que estão intimamente relacionados com nosso "ser social". Por esses motivos, os mecanismos mnemônicos são considerados essenciais para a elaboração da experiência e do conhecimento científico, filosófico e técnico. A memória sempre despertou o interesse e a imaginação do homem desde a antiguidade, porém os primeiros estudos científicos foram realizados há pouco mais de um século, trazendo várias discussões filosóficas antes disso. Hoje, graças aos avanços da ciência, conseguimos adquirir uma razoável compreensão dos mecanismos envolvidos no processo da formação da memória e de como isso reflete em outros campos da neurociência e da epistemologia. Sabendo disso, aqui inicialmente vamos discutir sobre a cronologia dos aspectos filosóficos seguidos dos aspectos científicos da memória.


História da memória como filosofia 

    As primeiras discussões em torno da memória surgiram na mitologia grega durante a Grécia antiga, onde a palavra "memória" era atribuída a uma deusa, a deusa Mnemosyne (imagem ao lado) que protege as Artes e a História. A deusa Memória dava aos homens o poder de voltar ao passado e de lembrá-los dos feitos, das palavras, da história e da arte dos humanos. Ainda na antiguidade Clássica, os romanos relacionaram a palavra "memória" ao aprendizado durante o desenvolvimento de uma arte chamada eloqüência ou retórica, na qual a memória era indispensável para que um bom orador, poeta ou político, conseguisse pronunciar longos discursos no intuito de persuadir e a criar emoções na população. Em aproximadamente 300 anos a.C. as primeiras referências filosóficas à memória foram realizadas por Platão (c. 427-c.347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), que distinguiram a conservação de sensações (retenção) e a reminiscência (recordação) como processos mnemônicos físicos. Entretanto, o filósofo grego chamado Plotino (205-270 a.C) buscou refutar platão e Aristóteles negando o caráter físico da memória através de uma explicação mística, relatando que a memória não se localizava no corpo, e sim na alma, já que o corpo era apenas um "obstáculo para a retenção de imagens". Essa visão mística da memória perdurou até o período Idade Média, onde os  grandes defensores e detentores dessa  idéia foram Santo Agostinho (354-430) e São Tomás de Aquino (1225-1274), já que para ambos, a memória era o local na alma destinado à conservação do homem, chamado "palácio da memória", onde  a  fidelidade  à  memória  dos  fatos  passados determinaria a  identidade  do  "Eu".  Apesar da concepção mística e adotada na época, já começavam a surgir as primeiras suposições de que a memória estava intimamente relacionada à personalidade do indivíduo de acordo com suas experiências vividas.
 
  Foi somente no início do século XVII com as obras de Francis Bacon, René Descartes e John Locke (imagem ao lado) que marcaram a filosofia moderna que uma importante teoria filosófica envolvendo a memória chamada de "teoria do conhecimento (ou gnosiologia)" se tornou uma doutrina. Essa teoria define as principais funções da memória, que envolve: a retenção de um dado da percepção, da experiência ou de conhecimento adquirido; reconhecimento e produção do dado percebido, experimentado ou conhecido numa imagem, que, ao ser lembrada, permite estabelecer relação ou nexo entre o já conhecido e os novos conhecimentos; recordação ou reminiscência de algo como pertencente ao tempo passado e, enquanto tal, diferente ou semelhante a algo presente;  e a capacidade para evocar o passado a partir do tempo presente ou de lembrar o que já não é por meio do que é atualmente. Essa teoria do conhecimento foi essencial para base da experiência e do conhecimento científico e filosófico envolvendo a memória, já que deu uma grande importância ao caráter subjetivo mnemônico que podem variar de acordo com as emoções e afetividade e de como isso pode ser influenciado pelas relações sociais. O debate filosófico sobre a memória perdeu intensidade com o maior desenvolvimento científico (como astronomia, física, química, biologia e paleontologia) durante os séculos XVI e XVII, principalmente com as contribuições de Galileu e Newton no uso rigoroso do método científico . Nesse contexto, nos últimos 100 anos, a psicologia cognitiva surgiu e ganhou um vasto espaço no campo científico, o que contribuiu para o enfraquecimento de algumas teorias filosóficas associadas a conceitos errôneos relacionados à memória, conhecimento, aprendizagem e cognição. 


História da memória como ciência
 
     Os primeiros trabalhos científicos realizados com a memória ocorreram no  final do século XIX após a difusão das idéias evolucionistas de Darwin, onde o psicólogo Alemão Hermann Ebbinghaus desenvolveu experimentos  que estudavam a memória de forma objetiva e quantitativa. Esse pesquisador investigou a capacidade de retenção de sequências de lista de sílabas específicas após variados intervalos de tempo, demonstrando que as memórias têm diferentes tempos de duração e que a repetição faz com que elas durem por períodos maiores, o que posteriormente iriam ser classificadas por outro pesquisador William James como memórias de curto (segundos e minutos) e de longo prazo (horas, dias, meses e anos). Essa distinção foi fundamental para a compreensão dos estudos da memória.
 
     No início do século XX,  foram desenvolvidos os primeiros modelos de estudo em animais para a compreensão do aprendizado e memória por Ivan Pavlov e Edward Thorndike através da conceituação de condicionamento clássico e operante. No condicionamento clássico, o animal aprende a associar dois estímulos, onde na presença de um dos estímulos o animal comporta-se como se tivesse diante do outro estímulo, por mais que ambos estímulos fossem condicionados separadamente mas associados por um estímulo neutro. Já no condicionamento operante, o animal aprende a fazer associação entre uma resposta e uma recompensa ou uma punição sempre buscando comportamentos que não levem a punição ou que resultem em recompensa (Imagem abaixo). Essas descobertas serviram como base do behaviorismo, movimento empírico que estudava o comportamento com o mesmo rigor científico de outras ciências, porém restrito a um pensamento baseado no indutivismo, ou seja, de que a ciência deve ser exclusivamente restrita ao comportamento observável. Em uma época em que falsificacionismo e o método dedutivista estava em ascensão no meio científico, o behaviorismo fez com que a psicologia fosse mais tarde vista como "anticiência", já que também excluíam processos cognitivos fundamentados na percepção, da atenção, da motivação, da ação, do planejamento e do pensamento, além do aprendizado e da memória. Foi apenas nos meados do século XX, que a ciência em torno da memória ganhou um enfoque menos comportamental e mais cognitivista, onde o pesquisador Frederic Barlett mostrou em seus experimentos que a percepção e a memória também dependem da estrutura mental do observador que a evoca, e não apenas das informações fornecidas pelo ambiente, o que enfraqueceu o movimento behaviorista e deu início a "revolução cognitiva".


     A Partir desse período, vários trabalhos científicos em torno dos mecanismos cerebrais envolvidos na formação da memória ganharam notoriedade, e a distinção e definição de suas etapas de aquisição, consolidação e evocação de informações começaram a se tornar mais complexas e organizadas. Inicialmente, ocorre a aquisição, que é o momento que estímulos adquiridos no ambiente externo chegam em nosso cérebro através de órgãos receptores sensoriais. Posteriormente, essas informações são armazenadas por um processo de consolidação, que se caracteriza pela estabilização das informações importantes a longo prazo. Nesse processo inicialmente as memórias recém adquiridas se encontram em um estado lábil (memória de curto prazo). Com o tempo, inicia-se o processo de consolidação com a ativação da cascata molecular responsável pela síntese proteica e plasticidade sináptica, que são responsáveis pela aprendizagem de novas memórias de longa duração. Durante muito tempo, a consolidação foi encarada como um processo imutável que não poderia sofrer alterações. Entretanto, estudos bastante atuais mostram que memórias previamente armazenadas em um processo de consolidação inicial podem ser modificadas e fortalecidas a partir da incorporação de novas informações em um processo de reconsolidação. Por fim, quando precisamos lembrar de uma memória, ocorre o processo de evocação que é retorno espontâneo ou voluntário dessas informações armazenadas.
 
     Ainda em meados do século XX, algumas teorias de aprendizagem questionavam quais eram as áreas cerebrais envolvidas no processo de cada etapa do mecanismo da memória e suas funções, apesar de se acreditar que a memória era distribuída por todo cérebro. Até surgiram algumas dúvidas em torno de que a memória poderia ser um mecanismo distinto da atenção, da linguagem e da percepção. Quem abriu as portas para possibilidades dos estudos das áreas responsáveis pela memória foi Broca, que em 1862 mostrou que era possível através de lesões restritas à parte posterior do lobo frontal cerebral causar efeitos deletérios na linguagem (que ficou conhecida  como área de Broca), o que gerou um engajamento científico para encontrar outras funções cerebrais e suas áreas responsáveis. O surgimento de hipóteses que envolviam a localização de centros cerebrais da memória só foram possíveis na década de 1940 com os estudos de Wilder Penfield que através da estimulação elétrica cerebral mapeou as funções motoras, sensoriais e da linguagem no córtex humano. Estudos realizados em pacientes com lesão do lobo temporal, como o trabalho pioneiro popularmente "paciente H.M", revelaram dois modos diferentes de aprendizagem, os implícitos e explícitos. De modo geral, para fins classificatórios, a memória pôde ser considerada não declarativa (implícita) ou declarativa (explícita). A memória não declarativa ou procedimental está relacionada com a aprendizagem de habilidades de caráter inconsciente, como aptidões motoras envolvidas no automatismo procedural, por exemplo, e estão intimamente relacionadas a áreas corticais de sensoriais de associação, corpo estriado e núcleos da base, assim como outras áreas também relacionada com a memória declarativa. Já a memória declarativa ou explícita é responsável pelo armazenamento de informações que podem ser evocadas de forma consciente, geralmente relacionadas à lembrança de eventos e fatos. Esse tipo de memória é processado principalmente estruturas do lobo temporal, hipocampo, córtex entorrinal e para-hipocampal (Imagem abaixo).
 
 
     Atualmente, apesar de várias lacunas acerca dos fenômenos fisiológicos envolvidos no processo de formação de memórias, muitos trabalhos realizados com reconsolidação de memória associados ao processo de extinção de memórias traumáticas tem se destacado cada vez mais no meio científico. Com o advento da tecnologia e das ciências biológicas, a utilização de novas drogas  e de  ferramentas como optogenética e eletroestimulação cerebral profunda como métodos de modulação dos mecanismos patológicos relacionados à memória tem gerado novas perspectivas no rumo do estudo mnemônico.  Por sua vez, esses novos movimentos científicos trazem novas discussões filosóficas em torno do assunto, já que se a memória é um componente individual intrínseco ao "ser", como podemos alterá-la de artificial? Estaríamos diante de um processo de transição epistemológica relacionada a uma nova forma definir a memória? Isso só vamos descobrir com as cenas dos próximos capítulos da ciência e filosofia em torno de tais paradigmas.


 
Referências:

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Chalmers, Alan Francis, and Raul Fiker. O que é ciência afinal?. São Paulo: Brasiliense, 1993.
 


Jackson Cionek

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