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O que o videoclipe de 911 da Lady gaga, experiência de quase morte e a neurociência tem em comum?

 
 
   Nessa sexta feira (18 de setembro/2020), a cantora Lady Gaga lançou o videoclipe para música “911”, em que o titulo faz referência ao número do serviço de emergência dos EUA. O video possui muitas referências artísticas e é composto por um visual excêntrico que já vem fazendo parte da identidade visual da cantora a muito tempo. Porém, apesar da letra trazer uma abordagem voltada a problemas pessoais na qual a cantora sugere pedir ajuda a emergência, o videoclipe também explora uma temática com aspectos voltados para morte que podem corroborar com achados neurocientíficos. Para continuar a discussão, confira o videoclipe abaixo:

       
 
 O que realmente são experiências de quase morte?   Então, percebeu o quanto o videoclipe é incrível? Sim, o tempo todo ela estava vivendo uma Experiência de Quase Morte (EQM). A EQM é um estado de morte iminente decorrente de algum evento traumático, como o acidente sofrido por Gaga, ou patológico no qual é relatado experiências sobrenaturais que transcendem os limites do convencionais do tempo e do espaço, um tipo de projeção da consciência. Tais experiências relatadas são como de ouvir o anúncio da própria morte, ausência de dor, sentir estar fora do corpo, envolventes sentimentos de paz, ouvir um ruído, ver e atravessar um túnel com uma luz em seu final, ingressar em alguma outra esfera ou dimensão, encontrar-se com seres não-físicos ou um "ser de luz", incluindo pessoas que já morreram, retornar à vida, ter novas visões da morte e adquirir novos conhecimentos e habilidades não adquiridos por meio da percepção normal. Muitas dessas experiências foram vivenciadas pela Gaga durante sua EQM no videoclipe, sendo representadas na forma artística, claro. Um dos exemplos é o encontro com divindades vindas do céu como "anjos" que a salvam da morte puxando-a pela corda amarrada em um dos seus pés evitando que ela suba aos céus e volte para vida terrena. 
   
  DMT: no puedes imaginarte una droga ni una experiencia tan extraña Apesar da atribuição sobrenatural e religiosa que geralmente é utilizado para explicação de tais eventos de uma EQM, a respostas de muitos aspectos já podem ser encontradas na literatura científica. Quando o cérebro entra no processo de morte, ocorre uma condição conhecida como isquemia cerebral, na qual a falta de componentes químicos e gasosos leva a uma 'inatividade elétrica completa' no cérebro. Estudos realizados com implantes de microeletrodos em pacientes terminais, constataram que atividade elétrica dos neurônios no cérebro, no momento da morte, tende a diminuir gradativamente no intuito de economizar energia dos neurônios. Também, foi observada uma atividade elétrica de forma "não organizada", como foi observado no lobo temporal, o que pode ter relação com alguns tipos de alucinações específicas encontradas nas EQMs. Além disso, as EQMs têm sido especulativamente atribuídas a vários neurotransmissores no cérebro, mais frequentemente as endorfinas ou outros opióides endógenos (liberados sob estresse como a situação de morte eminente) que pode ter relação com o alívio da dor e sensação de bem-estar. Um modelo mais abrangente sugere que um agente endógeno neuroprotetor similar à quetamina também pode ser liberado nessas condições de estresse, provocando sentimentos de se estar fora do corpo e algumas sensações como se sentir atravessando um túnel escuro em direção à luz, acreditar que morreu ou que está se comunicando com Deus, por exemplo. Sabendo da similaridade de efeitos entre essas substâncias endógenas e algumas substâncias exógenas, alguns trabalhos mostram a utilização de substâncias alucinógenas como dimetiltriptamina (DMT) presente em ervas como a Ayahuasca, como modelo adequado para o uso da simulação de EQMs para estudos de consciência em humanos, já  que os mesmos estudos detectaram uma semelhança significativa entre as características fenomenológicas das experiências induzidas pelo DMT e aquelas descritas por pessoas que relataram uma EQM.

      Voltando ao videoclipe de “911”, uma das conclusões mais importantes que o videoclipe trás sobre EQM e que pode ser amparado por argumentos neurocientíficos são as frequentes associações com eventos da vida real durante a EQM da Lady Gaga. Exemplos claros são dos possíveis “anjos" que representam os paramédicos, o cenário da EQM condizente com os cartazes dos filmes mexicanos presentes no local do acidente, mãe chorando segurando o filho morto nos braços, procedimentos do atendimento do serviço de emergência americano (como uso cobertor térmico, mascara de oxigênio e reflexo pupilar), entre outros detalhes e referências. Tudo isso mostra o quanto o ambiente externo e experiências pessoais e culturais prévias podem influenciar no tipo de EQM de forma totalmente individual.

    A religião e a crença pode ser algo inerente aos seres humanos podendo atuar como uma agente moduladora dos valores morais. Estudos que compararam relatos de EQMs de pessoas de diferentes culturas e religiões sugerem que as crenças culturais prévias têm alguma influência no tipo de experiência que uma pessoa relatará. Logo, indivíduos com a mesma crença tendem a apresentar uma EQM semelhante de acordo com sua percepção de vida após a morte já estabelecida durante sua formação durante a infância. Isso pode ser comprovado pelo fato de que as crianças, que são as menos prováveis de terem desenvolvido expectativas sobre a morte, relataram uma EQM com características similares às dos adultos. Além disso, outros trabalhos sugerem que pessoas que passaram por uma EQM tendem a ser sujeitos facilmente hipnotizáveis, a recordar mais frequentemente seus sonhos e também a reconhecer de forma significativa maior número de traumas vividos na infância do que outros sujeitos da população geral.

    Assim, mesmo sabendo que os fatores fisiológicos, psicológicos e socioculturais que possam realmente interagir de forma complexa conjuntamente com uma EQM, no geral, as teorias propostas e evidências até o momento não são o suficiente para demonstrar de forma definitiva todos os mecanismos envolvidos durante uma EQM. Dessa forma, é imprescindível que novos estudos de investigação da atividade cerebral elétrica (EEG) e hemodinâmica (NIRS) associados a padrões cognitivos antes, durante e depois de uma EQM seja realizados para a melhor caracterização do fenômeno. Por enquanto isso não acontece, vamos continuar ouvindo Lady Gaga e apreciando suas obras visuais, e nunca esqueça, se algum dia alguém estiver passando por alguma EQM por ai, POP A 911!

            

Referências:

Martial C., Cassol H.,Charland Palla V. Neurochemical models of near-death experiences: A large-scale study based on the semantic similarity of written reports. Consciousness and Cognition 69. March 2019 with 785 Reads DOI: 10.1016/j.concog.2019.01.011
 
Dreier, Jens P., et al. "Terminal spreading depolarization and electrical silence in death of human cerebral cortex." Annals of neurology 83.2 (2018): 295-310
Greyson B. Experiências de quase-morte: implicações clínicas. Rev. psiquiatr. clín. [online]. 2007, vol.34, suppl.1, pp.116-125. ISSN 0101-6083. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-60832007000700015.
 
Fenwick, Peter. "As experiências de quase morte (EQM) podem contribuir para o debate sobre a consciência." Rev Psiq Clín 40.5 (2013): 203-7.
 
Treffert, Darold A. "The savant syndrome: an extraordinary condition. A synopsis: past, present, future." Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences 364.1522 (2009): 1351-1357.
 


Rodrigo Oliveira

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