Vida após a morte | Life after death | Vida despues de la muerte
Todo mundo já ouviu falar sobre histórias de pessoas que vivenciaram um estado de morte iminente decorrente de algum evento traumático ou patológico e que relataram experiências sobrenaturais que transcendem os limites do convencionais do tempo e do espaço, um tipo de projeção da consciência. Tais experiências relatadas são como de ouvir o anúncio da própria morte, ausência de dor, sentir estar fora do corpo, envolventes sentimentos de paz, ouvir um ruído, ver e atravessar um túnel com uma luz em seu final, ingressar em alguma outra esfera ou dimensão, encontrar-se com seres não-físicos ou um "ser de luz", incluindo pessoas que já morreram, retornar à vida, ter novas visões da morte e adquirir novos conhecimentos e habilidades não adquiridos por meio da percepção normal. Essa experiência é conhecida no meio popular e científico como Experiência de Quase-morte (EQM), que é uma temática abordada na série chamada "The OA", da Netflix. Tal série conta a história de um neurocientista chamado Hap que por meio de experimentos científicos tenta provar a existência de vida após a morte induzindo sucessivas EQMs em suas cobaias humanas. Para isso, ele usa uma espécie de eletroencefalograma (EEG) para analisar a atividade cerebral de pessoas durante uma EQM e outros tipos de análise. Uma dessas cobaias, a protagonista Praire, que era cega, relata detalhes de suas EQMs do tempo que ela foi mantida em cativeiro pelo Hap e de como ela recuperou a visão nesse período. Apesar de se tratar de uma ficção científica, muitas experiências de Praire são condizentes com EQMs da vida real já citadas aqui, como contato com seu pai que já faleceu e com uma entidade divina feminina que representa um "Deus"; possibilidades de viagens interdimensionais; e aquisição de novas habilidades, como a recuperação de sua visão. Veja o trailer abaixo:
Estudos retrospectivos com pessoas que vivenciaram EQM mostraram que, em geral, são habitualmente sujeitos psicologicamente saudáveis que não diferem da população em relação a idade, gênero, etnia, religião, religiosidade ou saúde mental. A EQM não pode ser considerado um estado psicopatológico, já que além de apresentar conseqüências muito diferentes das geradas por experiências psicopatológicas, pode ser decorrente de disfunções de outros sistemas como cardíaco. Pesquisas recentes sugerem que EQMs são referidas por 12% a 18% dos sobreviventes de paradas cardíacas. Mas o que pode acarretar os eventos de uma EQM? Existem explicações científicas para isso? Tudo pode ser apenas um delírio momentâneo? Podemos considerar que sim, porém não podemos ignorar o fato de que todas as pessoas que passaram por isso relataram experiências muito semelhantes para ser consideradas apenas como um delírio de comportamento aleatório. Aqui, traremos algumas teorias e explicações neurocientíficas existentes mais plausíveis.
Vida apos a morte Life after death Vida despues de la muerte
Quando o cérebro entra no processo de morte, ocorre uma condição conhecida como isquemia cerebral, na qual a falta de componentes químicos e gasosos leva a uma 'inatividade elétrica completa' no cérebro. Estudos realizados com implantes de microeletrodos em pacientes terminais, constataram que atividade elétrica dos neurônios no cérebro, no momento da morte, tende a diminuir gradativamente no intuito de economizar energia dos neurônios. Também, foi observada uma atividade elétrica de forma "não organizada", como foi observado no lobo temporal, o que pode ter relação com alguns tipos de alucinações específicas encontradas nas EQMs. Além disso, as EQMs têm sido especulativamente atribuídas a vários neurotransmissores no cérebro, mais freqüentemente as endorfinas ou outros opióides endógenos (liberados sob estresse como a situação de morte eminente) que pode ter relação com o alívio da dor e sensação de bem-estar. Um modelo mais abrangente sugere que um agente endógeno neuroprotetor similar à quetamina também pode ser liberado nessas condições de estresse, provocando sentimentos de se estar fora do corpo e algumas sensações como se sentir atravessando um túnel escuro em direção à luz, acreditar que morreu ou que está se comunicando com Deus, por exemplo. Sabendo da similaridade de efeitos entre essas substâncias endógenas e algumas substâncias exógenas, alguns trabalhos mostram a utilização de substâncias alucinógenas como dimetiltriptamina (DMT) presente em ervas como a Ayahuasca, como modelo adequado para o uso da simulação de EQMs para estudos de consciência em humanos, já que os mesmos estudos detectaram uma semelhança significativa entre as características fenomenológicas das experiências induzidas pelo DMT e aquelas descritas por pessoas que relataram uma EQM.
Como vimos em nosso blog "Além da Religião, da Misticidade e da Espiritualidade, a perspectiva da Neurociência em evidência" a religião e a crença pode ser algo inerente aos seres humanos podendo atuar como uma agente moduladora da dos valores morais. Trabalhos que compararam relatos de EQMs de pessoas de diferentes culturas e religiões sugerem que as crenças prévias têm alguma influência no tipo de experiência que uma pessoa relatará. Logo, indivíduos com a mesma crença tendem a apresentar uma EQM semelhante de acordo com sua percepção de vida após a morte já estabelecida durante sua formação durante a infância. Isso pode ser comprovado pelo fato de que as crianças, que são as menos prováveis de terem desenvolvido expectativas sobre a morte, relataram uma EQM com características similares às dos adultos.
Alguns trabalhos sugerem que pacientes que passaram por uma EQM tendem a ser sujeitos facilmente hipnotizáveis, a recordar mais frequentemente seus sonhos e também a reconhecer de forma significativa maior número de traumas vividos na infância do que outros da população geral. Outros efeitos também foram observados em pessoas pós EQM, incluindo a ampliação da espiritualidade, maior preocupação com outras pessoas, valorização da vida, diminuição do medo da morte e da competitividade. Efeitos negativos como raiva, depressão duradoura, sentimentos de intenso isolamento, baixa sociabilidade e alterações na percepção da realidade também foram observados nesses indivíduos. Assim como a protagonista de The OA, Praire, que relata que tornou a enxergar graças a uma dádiva divina dada por uma "Deusa", relatos semelhantes também são encontrados na vida real, porém não relacionados a recuperação visual, mas outras habilidades.
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Nesses casos, alguns pesquisadores acreditam que o ganho de uma nova habilidade está relacionado ao fato de como o indivíduo entrou naquele estado de morte passageira, acontecendo algo semelhante como a síndrome adquirida de Savant, na qual a pessoa passa a ter facilidades em lidar com arte, cálculo e mecânica. Nesse caso, a habilidade adquirida pode ser explicada quando um dos lados do cérebro compensa o prejuízo sofrido pelo outro lado após um traumatismo craniano ou outra forma que pode vir a danificar estruturas cerebrais por exemplo. Entretanto, não existe nenhum trabalho na literatura que compare as formas de como as EQMs foram geradas com a apresentação desse quadro.
Embora os fatores fisiológicos, psicológicos e socioculturais possam realmente interagir de forma complexa, conjuntamente com uma EQM, no geral, as teorias propostas e evidências até o momento não são o suficiente para demonstrar de forma definitiva todos os mecanismos envolvidos durante uma EQM. Por enquanto tudo isso não é totalmente esclarecido pela ciência, nos resta mergulhar no universo de fantasia de The OA, viajando um pouco nessa ficção transcendental mas sempre lembrando das evidências já existentes.
Vida apos a morte Life after death Vida despues de la muerte
Dreier, Jens P., et al. "Terminal spreading depolarization and electrical silence in death of human cerebral cortex." Annals of neurology 83.2 (2018): 295-310
Fenwick, Peter. "As experiências de quase morte (EQM) podem contribuir para o debate sobre a consciência." Rev Psiq Clín 40.5 (2013): 203-7.
Treffert, Darold A. "The savant syndrome: an extraordinary condition. A synopsis: past, present, future." Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences 364.1522 (2009): 1351-1357.